Pontos de luz

Isabelle
6 min readMay 2, 2024

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O sol do poente batia no grande rio da cidade de forma que o fazia parecer infinito. Esse era o melhor horário do dia para Teresa, não apenas porque estava voltando para casa do trabalho, mas pela beleza do momento — da água, do céu, dos animais que encontrava pelo caminho, das pessoas, dos seus sentimentos que se tornavam mais ternos quando se lembrava de toda graça que existe na vida. Graça da qual parecia ser fácil demais de se esquecer.

No mês de maio, as chuvas que eram comuns no início do ano já haviam cessado. Por isso, apesar do cansaço, Teresa foi a caminho do rio, sentou-se no único banco que existia naquele local cercado por árvores e deixou sua bolsa rolar para a grama.

Eram seis horas da tarde e carros passavam em grande fluxo pelas ruas, mas naquele local tudo parecia tão afastado, mesmo fazendo parte da cidade. Era como uma floresta secreta, mas que todos os que conheciam bem a região sabiam que existia.

Teresa gostava do silêncio. Olhando para toda aquela água, sentia-se pequena e se emocionava, como costumava acontecer quando sua vida estava começando e as sensações eram novas, sendo necessário que ela as desvendasse. Enquanto isso, o sol desaparecia no horizonte, mas ela nem chegou a notar como, de súbito, o azul-celeste se tornou marinho e o breu tomou conta do local. Levantou-se e caminhou para a borda da água.

Alguma coisa iluminada saía do rio. Vinha do seu fundo para a superfície, na qual um ponto de luz nadava de um lado para o outro, dando voltas, cintilando diferentes partes da água e clareando o rosto de Teresa. Ela pensou em esfregar os olhos, balançar a cabeça, mas tinha certeza de que não poderia ser uma ilusão. Não era apenas a sua visão que testemunhava — sentia seu corpo se aquecer da cabeça aos pés, como se tivesse sido coberto com uma manta macia.

Ao fundo do rio, a cobra-de-fogo se agitava com o cair da noite e a proximidade de um ser humano. Boitatá sabia em seu âmago que aquela pessoa, seja lá quem fosse, não apresentava perigo algum àquela área e aos seus habitantes, mas o sinal de alerta era um instinto poderoso e que não deveria conter. Estando tão submersa na água, não se incendiaria, mas sua luz era intensa e aquecia a água ao seu entorno.

Ainda parada no mesmo local, Teresa se abaixou e tocou levemente a água. Estava quente, mas não insuportável, estava até mesmo convidativa. Mas ela tinha consciência de que não poderia e nem mesmo deveria adentrar naquelas águas, por mais tentador que fosse. Apesar do espanto, a curiosidade e o encanto tomavam conta de sua mente e de sua alma.

Quando, repentinamente, a luz se apagou como um interruptor sendo desligado, assustando Teresa com a escuridão. Há quanto tempo estava ali mesmo? Ela não saberia dizer.

Do outro lado do rio, Boitatá se arrastava por entre as gramas, se enrolando em árvores com galhos refrescados pelo vento na tentativa de acalmar o calor do seu corpo comprido. Havia se afastado do ser humano e não sentia mais a sua presença.

Aquela área de rio e arvoredo era considerada sagrada por muitos na região e diversas histórias que a envolviam eram contadas de boca em boca. Eram tantas que não havia uma só pessoa que poderia contar todas, nem mesmo os mais curiosos ou mais convencidos. O principal motivo de tanta comoção era a preservação estranhamente natural da floresta, sem a necessidade dos cuidados e da proteção de seres humanos. Enquanto pequenos terrenos eram incendiados e a flora de outros locais eram castigadas pela ganância dos homens, aquela área continuava com suas plantas e seus animais são e salvos.

No entanto, alguns homens da cidade desapareciam sem deixar rastros.

Investigações eram feitas na tentativa de desvendar os sumiços que aconteciam em números inconstantes todos os anos, mas nada havia sido descoberto. O primeiro desaparecimento misterioso a ser notado pelo povo havia acontecido 50 anos atrás.

Mas Boitatá sabia o porquê e se orgulhava do seu trabalho como protetora de toda aquela fauna e flora. Nunca se arrependeu de ter incendiado os homens que se sentiam no direito de desrespeitar aquelas criaturas e aquele lugar que também é a casa desses mesmos homens. Boitatá fazia o seu trabalho. A sua magia nunca foi e nunca seria desperdiçada.

Apesar do heroísmo e das inúmeras histórias que poderia alegremente compartilhar, a cobra-de-fogo era solitária e se considerava mal compreendida pelos seus companheiros.

Os animais a temiam e a evitavam, como se o fogo que Boitatá mirava nos homens seria, um dia, direcionado a eles. Era absurdo. Tentara diversas vezes explicar, mas nenhum dos bichos dava ouvidos, pois estavam ocupados fugindo, a evitando ou se escondendo em um local tão longe ou tão fundo que o canto de Boitatá acabava por ser abafado e inaudível.

Há anos, perdera sua família de vista enquanto viajavam pelo território, sendo levados pelos rios. Sofrera muito com a ausência e a saudade, mas pelo menos ainda tinha o nome que sua mãe lhe deu e a estima pelos seus poderes que seu pai lhe ensinou.

Assim, Boitatá se arrastava toda noite para a mesma árvore e se enrolava no mesmo galho, na qual se sentia acolhida, segura e um pouco menos sozinha. Então descansava.

Saindo do seu quase-transe, Teresa procurou sua bolsa pelo gramado e seguiu seu caminho para a casa.

Estava exausta por conta do dia de trabalho pesado. Trabalhava como recepcionista na biblioteca da cidade. Naquele dia, porém, havia feito mais do que ficar sentada atendendo quem aparecesse na porta e fez parte da organização de novos livros, revistas e jornais que haviam chegado ao espaço em uma van velha.

Mas Teresa estava feliz, mansa, como se flutuasse nas ruas iluminadas pelos postes de luz. Nunca imaginou que seria a testemunha de tamanha magia e sabia que, no próximo dia, teria de voltar naquele local, naquela mesma hora.

Assim o fez, e viu novamente a luz e sentiu o seu calor. Seu peito se aquecia com euforia e admiração. Estava decidida, iria todos os dias passar um tempo na companhia do rio e de sua claridade.

Boitatá percebia a proximidade daquele mesmo ser humano e, na quarta visita de Teresa, se sentiu à vontade o suficiente para espiar na superfície do rio. Era uma humana jovem, com cabelos quase escuros e encaracolados que caíam pelos seus ombros curvados. Ela segurava um objeto retangular com uma mão e um objeto menor, cilíndrico, com a outra.

Teresa escrevia sobre o que via e sentia. Pensou que estava usando a luz que saía do rio como uma luminária e riu, fazendo o som de sua voz ecoar pela floresta.

A cobra observou Teresa, assim como a mulher havia observado sua luz naqueles últimos dias. Boitatá não entendi o porquê de a humana voltar com tanta frequência, mas começou a temer ir para aquele ponto das águas e não sentir a sua presença.

Boitatá imaginava o que aconteceria se se revelasse para aquela mulher. O interesse que ela parecia ter pelo lugar e por seu brilho começou a instigar a vontade de se apresentar. De tentar cantar para ela, como tentou tantas vezes cantar para os animais, mas nunca era ouvida.

Teresa ainda estava sendo observada quando levantou seu olhar do caderno. Boitatá emergiu rapidamente. Mas foi um acidente feliz, pois Teresa ouviu a movimentação na água e finalmente entendeu: a luz não era apenas uma luz, era um animal.

A mulher pensou por pouco tempo, então começou a falar para o rio e sua luz, esperando que a criatura a escutasse. A cumprimentou, se apresentou e elogiou a magia, o brilho, o calor. Então, como se soubesse exatamente o que dizer, se explicou: voltava lá todos os dias desde que a viu, porque admirava. Ia sempre sozinha, pois não saberia como explicar o brilho para ninguém e sabia que sua reação de fascínio poderia ser julgada por muitos.

Além do medo do que poderia acontecer com o brilho, com o lugar e com si mesma. Teresa conhecia a malícia de alguns dos homens.

A cobra-de-fogo escutava e a compreendia, pois sua magia ia para além das chamas. Foi, então, para a superfície. Teresa observava em silêncio a luz se aproximando, sentia o calor intensificar e seu coração acelerar.

Boitatá colocou sua cabeça para fora da água, olhou com seus olhos verdes para os olhos escuros de Teresa e se aproximou. A cumprimentou mostrando sua língua partida ao meio, e então cantou a sua história.

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